água-cidade: pedra bonita

Era menino, um tanto mais do que sou hoje.
A cor escura, escura, escura, da cor da pele de Lúcia contrastava com a parede branca e os tapetes de crochê feitos pela minha mãe: os móveis eram sempre banhados de um líquido viscoso para itens de madeira. O cheiro de sábado invadia a casa sob o som de alguma música que integrava a trilha sonora do filme Flash Dancing. A fita cassete era então colocada em seu lado B para dar continuidade aos cheiros de desinfetante, água sanitária, a roupa com água e sabão; a fritura, o feijão, o arroz. A TV ligada, vinte e nove polegadas, e eu não a escutava bem o suficiente. O controle retangular com botão de ligar, bem ali, em sua cor que um dia foi vermelho, sempre no ringue: meu irmão e eu precisávamos, sim, sempre, disputar pela programação televisiva. Por vezes, hoje consigo ver, apenas por pirraça, mesmo quando os interesses eram afins.
Sob a robusta tela, um móvel feito sob medida comportava também um aparelho receptor e um tocar de fitas VHS, o qual permanecia imóvel sobre as tiras de madeira.

Pra mim, o dia sempre começava mais intenso, menos desgastante, menos atarefado. Lá, sobre a cama de madeira de lei, ali mesmo, minha mãe deitava após todo o roteiro programado para a manutenção das casa.

Por vezes, apenas algumas, eu a vi dançar entre uma tarefa e outra.

 

Navegar…

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Certa vez, fui navegador.
Não consegui dormir na última noite. Creio que estava ainda em busca desse lugar onde as águas são muitas e o abismo as abraça como forma de sinalizar o final da terra.
Enjoava-me fácil com o cheiro de peixe podre acumulado na proa da embarcação.
Recordo-me, embora com a mesma precisão que um cego vê uma estrela no céu, do cheiro salgado do vento tocando o meu rosto árido.
Para ver, basta abrir o coração.
Talvez por isso tinha visto tantas miragens. Viagens longas costumam fazer isto. A ânsia de estar novamente em terra me tomava com força tamanha que meu corpo sequer tinha forças para reter a água dos odres que havia acabado de beber…
Eu via o sol com tamanha paixão que, não raro, me via distante, nadando no horizonte, abraçando aquela luz alaranjada em um fim de tarde.

Sinto que as forças se esvaem mais uma vez.
Não há mais o que comer na embarcação.
Talvez seja hora de voltar pra casa.

Qual será a próxima viagem, no entanto, ainda não sei.
Tentarei… chegar… dest… destino… meu…

2 de novembro

Claridade difusa vinda das nuvens densas.
Domingo sempre tem um quê de melancolia quando amanhece nublado. E talvez mesmo em dias de sol.
As nuvens decidiram vir ao chão desta terra, apenas para ver como as coisas estavam.

(…)

Entardeceu.
Fez-se luz.
Não como o primeiro dos primeiros dias, quando se ouviu um “Faça-se luz!”, mas o fato é que vi tudo iluminado pela luz do sol nesta tarde de domingo.

(…)

Cemitério. Destino de todo-aquele-que-habita-a-cidade e que lá repousará algum dia.
Passei por lá. Entrei. Tudo era tranquilo. Vez ou outra, pássaros conversavam entre si e diziam que não iria chover de novo.
Ouvi outros sons. Não, não era de pássaros ou de pessoas do além-túmulo.
Em alto e bom som, “prosas” entremeadas:

“Mas e foi? Eu nem sabia,’minino’… Mas pra você ver como são as coisas…”
“Pois foi… Noventa e sete anos! Mas a véia tá viva ainda… Tá!”
“E num é que era filha de D. Fulana da rua tal? Morreu faz mais de dois mês.”
“Ó pá aqui… Isso era um bicho ruim… nunca vi! Deus que me perdoe, mas esse mereceu.”
“Num tô nem achando de Seu Fulano ‘peraqui’… Deve ‘di’ tá ali na frente”.

(…)

Resolvo sair de cena. A inquietude cessa.
No portão, uma senhora entra:
“Eeeeeei… Aí ‘né’ mercado não!”
Pausa.
“Eeeeei… Tô ‘dizeno’… Aí ‘né’ mercado não!”

Eu rio [quiçá, mar!]
Meu semblante não demonstra.
O burburinho não cessa, mas se distancia à medida que meus passos avançam.
A garganta se prende. Os pulmões se contraem.
A pequenos e delicados passos, a melancolia me acompanha na saída.
“Quantos já se foram… quantos estão por vir…”

(…)

Claridade profusa vinda do sol intenso.
Domingo nem sempre tem esse quê de melancolia quando entardece ensolarado. E talvez nem mesmo em dias nublados.
As nuvens decidiram passear por outras terras, apenas para ver como as coisas poderiam estar do-lado-de-lá.

Monólogo Dialogado VI

— Como deseja usar o seu tempo?
— Quais são as opções?
— Comer… dormir… estudar… trabalhar…
— Dá pra fazer tudo isso ao mesmo tempo?
— Claro que não… Só pode escolher dois.
— Dormir… fora! Comer? Fora… Ok… estudar e trabalhar.
— Ótima escolha.
— Sério?
— Sim… vai ser interessante te ver deslocando o pensamento, diluindo a memória, em constante desfoque…
— Sádico…
— Sabe… você me parece idiota às vezes.
— Ah, obrigado. Ao menos só “às vezes”.
— Pense comigo: qual o tamanho dos teus braços?
— Pequenos.
— Sim… e qual é o tamanho do mundo?
— Bem… Algo em torno de 8 heptalhões de vezes maior.
— Heptalhões? Ah, sim, hipérbole sua, mais uma vez. Bem, o que quero dizer é que não se pode abraçar o mundo com os braços curtos.
— Obrigado por me lembrar.
— Respire mais, durma mais, escreva mais. Melhoras virão.
— Acredito em tuas palavras.

A música continua a tocar, o celular a carregar.
Energias, no entanto, se esgotam e se esvaem como se o amanhã trouxesse o peso das horas agridoces.

 

 

Sobre/sob/sobe a loucura

A loucura dos dias, das horas, dos fios dos postes, das senhoras que tecem os fios da morte, dos aventureiros à própria sorte…
À loucura da vida, que de tão não-vivida, se faz e se desfaz como uma ferida que teima em não cicatrizar. 
A loucura dos passos, dos abraços, daquilo que desfaço quando venho me encontrar.
À loucura da cura, dos tratamentos, dos tormentos, das velas aos ventos, desvelos e inventos a se formar.

A loucura.
Há loucura!
À loucura.
Alô, cura?

Ah, loucura, o que seria de mim se não estivesses a me acompanhar?

Poeira

Imagem
“Ei, você não vai acordar?”

Passava das 8h da manhã.

Abriu os olhos.
O cotidiano lhe impusera o despertar mecânico, automatizado.
Não ousara abrir a janela e deixar o sol entrar em seu quarto empoeirado.
Uma avalanche.
Viu poeira sobre as mãos, sobre seus pés e ao ver sua imagem no espelho, viu apenas o cinza.
Não sentiu o chão.
Não sentiu nada.

“Ei, você não vai se limpar?”
Sentiu-se mal.
“Você precisa se limpar…”
Não sentiu mais nada.

Imerso em poeira cinza, tudo o que sentiu foi a ausência de um aspirador de pó.

“Ei, você não vai me escutar?”
Estava ali, inerte, perdido em si, destituído dos seus sentidos.
Não viu o sol. Não sentiu o vento. Não ouviu mais nada.

Não fez nada além de se entregar ao abraço daquela poeira acinzentada…

“I’ll lay me down…”

Estou há vários minutos repetindo essa música durante essa madrugada improdutiva.
Deveria me centrar e terminar meus trabalhos, mas minha atenção se desloca a outras coisas involuntariamente.
Preciso, seriamente, ver como tratar isso.

De todo modo, like a bridge over troubled water, I’ll lay me down…

O Fim do Mundo (?!)

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Só queria que você fosse embora…

Eu não queria que chegasse a este ponto. Não mesmo.
Devo dizer, no entanto, que a sua companhia não me agrada. Nunca agradou.
Desde que você passou a conviver comigo, só tem me trazido problemas.
Não, não é egoísmo: apenas tenho o direito de ficar bem. E você, simplesmente, é o problema.
Já perdi algumas noites incomodado com você bem ali pertinho de mim. Volta e meia, procurava chamar minha atenção.
Não precisava agir desta forma. Não precisava ser assim.
Eu tô cansado.
E eu não queria que chegasse a este ponto. Não mesmo.

Só queria que você fosse embora.
Só queria que você não estivesse mais comigo.
Preciso ficar bem, mas contigo não dá.
Cansei!
Preciso das minhas noites de sossego de volta.

Tosse, por favor, queira se retirar da minha vida!

Na estrada…

Eu passei horas na estrada. Horas mesmo.
Dentro do ônibus, vi poesia passando pela janela; pintura, através do pôr-do-sol.
Ainda assim, não senti o peso das horas.

Eu passei horas na estrada. Horas mesmo.
Fora do ônibus, pausas para readaptar o esqueleto a sua forma original.
Ainda assim, não senti o peso das horas.

Eu passei. As horas passaram. A estrada também.
Cheguei, enfim, ao meu destino.

 

29/10/12 – Cheguei em São Paulo-SP e logo busquei uma forma de ir a Piracicaba-SP.
Vim ver minha mãe, seu sorriso e o seu abraço. E é justo nestes momentos que é bom não sentir o peso das horas.


Fala que eu te ovo!